CARTA DE DIREITOS DO PATRIMÓNIO CULTURAL PORTUGUÊS

Posted by on Mai 18, 2021 in Destaques, Notícias

CARTA DE DIREITOS DO PATRIMÓNIO CULTURAL PORTUGUÊS


O Património Cultural, expresso em Bens Culturais, conforme a designação da Lei de Bases do Património Cultural Português (lei nº 107/2001), inventariado e classificado nos termos desta Lei ou não, constitui, juntamente com a língua falada, a máxima valência identitária de um país, de uma civilização e de um povo. Inclui não somente as manifestações da História, Arqueologia, Arte, Etnografia e Antropologia, o património documental e arquivístico, mas também os patrimónios imateriais e intangíveis e o próprio património natural e ambiental enquanto
construção antrópica. Esta definição de Bem Cultural, ampla e integradora, que a legislação portuguesa consagra, encontra-se igualmente fixada na legislação internacional da UNESCO, do Conselho da Europa e da União Europeia.

Os Bens Culturais constituem uma teia de relações históricas, críticas e afetivas em que a própria vida e dignidade humanas melhor se percebem e ganham sentido. Todos aspiram a políticas de estudo, proteção e revalorização, que cabem à Arqueologia, à História da Arte, à
Museologia, à Conservação e Restauro, às Ciências da Documentação e da Informação, às Ciências da Natureza, às Ciências do Património, às Ciências Educativas e aos demais ramos científicos. Estas políticas que devem constituir-se como prioridade dos responsáveis, sejam eles
estatais ou autárquicos, públicos ou privados, e ser asseguradas pela adequada disponibilização de recursos humanos, organizativos e financeiros, dentro de programas de longa duração, gerados através da audição útil dos cidadãos e nomeadamente do movimento associativo do
sector e dos profissionais e demais agentes envolvidos naqueles trabalhos.

Os Bens Culturais, dada a sua capacidade identitária intrínseca, são ainda dotados de sentidos que perduram no tempo histórico e abrem campo a debates frutuosos e diversificados. Por essa mesma razão também, exigem cuidados reforçados. Quando se referem mais especificamente os
monumentos e obras de arte, melhor se percebe como esse é, aliás, o seu saber vocacional: foram produzidos num dado tempo, não para gerarem consensos, mas justamente para fazerem valer ou simplesmente suscitarem as dimensões plurais de afirmação que os seus valores permitem exprimir.

Para além das opções de estilo, ou dos gostos dominantes, próprios de cada
época, as ‘obras de arte’ e demais objetos patrimoniais incorporam poderosos e duradoiros significados, os quais lhes conferem sentidos sociais. Esta dimensão perdura e torna-se uma evidência especialmente em países de longa continuidade histórica, pelo que se impõem políticas de estudo, acautelamento e maior responsabilização.

Por alguma razão os Bens Culturais, e maximamente as chamadas obras de arte, não se esgotam nos ‘temas’ representados e nos ‘contextos’ temporais precisos em que foram gerados. Independentemente da sua maior ou menor qualidade e originalidade de criação, eles exprimem sempre discursos com sentido de futuro, sendo por isso trans-contemporâneos, ou seja, persistem com ativa vivencialidade e projetam sentidos históricos, estéticos e ideológicos percetíveis e recontextualizáveis. É esse, aliás, o papel dos Bens Culturais: interagirem em cada situação histórica como testemunho ou como interlocutor de fruição e resignificação. Não são
por isso apenas passado, são sempre e sobretudo presente, sendo ainda projeções possíveis do futuro.


A este poder imenso de sedução alia-se, porém, a sua fragilidade física, material ou memorial: os Bens Culturais estão sujeitos à degradação e envelhecimento naturais, ao abandono e ruína, ao desinteresse das tutelas, às intervenções desadequadas, até quando realizadas com boas
intenções. Em casos-limite podem ainda estar à mercê de apelos de esconjuramento e radicalidade destrutiva, que abrem campo ao iconoclasma.

É urgente, a este respeito, saber desmontar o argumentário pobre de quem advoga a destruição ou vandalização de monumentos, esculturas, ‘obras de arte’ em geral, apregoando ideias antigas, normalmente revestidas de pseudo-modernidade, debaixo de invocações religiosas, políticas, estéticas, morais ou outras. Sejam quais forem as razões invocadas para esconjurar símbolos e códigos, sejam quais foram as relações de poder ou os regimes sociais, devem existir sempre alternativas à brutalidade iconoclasta – ou ao seu espelho contrário, o abuso iconofílico, que tende a impor leituras únicas, em tudo contrárias ao debate plural que em última razão justifica os próprios Bens Culturais a salvaguardar, que devem espelhar a pluralidade de visões de uma sociedade democrática, pautada pela diversidade, pela convivência e pela tolerância. Trata-se aqui de princípios civilizacionais que legitimam as boas práticas no campo do Património Cultural, a que devemos continuamente dar cumprimento e impõem ao Estado –
justamente porque a Memória, fixada em Bens Culturais, constitui uma das prioridades máximas de qualquer comunidade politicamente organizada – assumir maior ousadia no investimento, na salvaguarda, na promoção, nos recursos e na formação técnica.

É por isso e no exercício das suas funções de cidadania que as Associações do Património Cultural Português abaixo indicadas apresentam ao País, e nomeadamente aos poderes políticos democráticos, a Carta de Direitos do Património Cultural Português que se consubstancia nos seguintes parágrafos:

  1. Os Bens Culturais têm direito à existência, à sua continuada vivência estética, material e simbólica.
  2. Os Bens Culturais têm direito a ser conservados e protegidos, estudados, analisados, ensinados e vivenciados através de legislação adequada.
  3. Os Bens Culturais têm direito inalienável de salvaguarda, inventariação e classificação através de políticas, recursos e organismos públicos adequados às suas especificidades disciplinares.
  4. Os Bens Culturais têm direito à resistência das comunidades perante ameaças iconoclásticas.
  5. Os Bens Culturais têm direito à resistência das comunidades perante casos abusivos de iconofilia.
  6. Os Bens Culturais têm direito a não serem subjugados a interesses individuais ou coletivos que lhes imponham utilização, função ou rentabilidade que possam de algum modo provocar a sua destruição, mutilação, descaracterização ou perda absoluta do significado com que
    foram criados.
  7. Os Bens Culturais têm direito ao escrutínio crítico e integridade física em cada nova situação ou tempo histórico.
  8. Os Bens Culturais têm direito a desempenhar uma função de cidadania por assumirem sempre um valor testemunhal e poderem protagonizar um desejável espaço de encontro e concórdia.
  9. Os Bens Culturais têm direito de inclusão face à heterogeneidade (religiosa, social, rácica, política) dos seus interlocutores, mantendo com os mesmos relações de interpelação criativa.
  10. Os Bens Culturais têm direito ao cumprimento das suas mais-valias históricas, estéticas, pedagógicas e sociais em qualquer tempo, pelo que nenhum ‘hoje’ os pode considerar seus e, pelo contrário, os deve usufruir com a humildade de pensar no ‘ontem’ e no ‘amanhã’.

Em 14 de maio 2021

AAP – Associação dos Arqueólogos Portugueses
APAC – Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos
APAI – Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial
ADPS – Associação de Defesa do Património de Sintra
APHA – Associação Portuguesa de Historiadores da Arte
APOM – Associação Portuguesa de Museologia
APPI – Associação Portuguesa para o Património Industrial/TICCIH-Portugal
Associação Círculo Dr. José de Figueiredo – Amigos do Museu Nacional de Soares dos Reis
BAD – Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação
Fórum Cidadania Lx
Fórum de Conservadores-restauradores
GECoRPA – Grémio do Património
GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente
ICOM Portugal – Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional dos Museus
OPRURB – Ofícios do Património e da Reabilitação Urbana
PROGESTUR – Associação Portuguesa de Turismo Cultural

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