Exmo. Senhor Ministro da Cultura
Dr. Pedro Adão e Silva
Exma. Senhora Secretária de Estado da Cultura
Dr.ª Isabel Cordeiro
Na sequência das notícias divulgadas sobre a expedição temporária da pintura a óleo Descida da Cruz de Domingos Sequeira, o ICOM Portugal manifestou, no passado 7 de fevereiro, a Vossas Exas. a sua profunda preocupação, solicitando a consulta dos respetivos elementos processuais associados e inerentes ao mesmo.
A leitura e exame do processo decorreram no dia 14 de fevereiro nas instalações da Museus e Monumentos de Portugal, E.P.E. (MMP), sucessora da extinta Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), atualmente com atribuições e responsabilidades na circulação dos bens culturais nacionais.
A empresa Starcorp Portugal, SA. comunicou, a 2 de novembro 2023, à DGPC a expedição temporária do referido quadro (de 2 de novembro 2023 a 2 de novembro 2024), com possibilidade de venda na galeria Colnaghi, em Madrid.
Seguindo os procedimentos estabelecidos na Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro, foi obtido, a 14 de novembro 2023, o parecer técnico do Exº. Senhor Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e historiador de arte, Dr. Joaquim Oliveira Caetano, que propôs, dando conhecimento do mesmo à Exª. Senhora Secretária de Estado, Drª Isabel Cordeiro: i) o indeferimento do pedido de expedição temporária; ii) o início imediato do processo de classificação da pintura como Bem de Interesse Nacional, impedindo a sua saída do território; iii) o início imediato do processo de classificação das duas outras obras da mesma série (Ascensão e Juízo Final) ainda em posse da família; iv) o início de negociações junto dos proprietários com vista à possível aquisição da obra Descida da Cruz pelo Estado Português.
Este parecer motivou, no dia 15 de novembro 2023, a elaboração de uma informação do Dr. José António Falcão, Técnico Superior da DGPC, propondo a classificação da referida obra, com conhecimento e aprovação da Drª. Ana Saraiva, Chefe de Divisão de Património Móvel e Imaterial, e da Subdiretora-Geral da DGPC, Drª. Rita Jerónimo.
No mesmo dia 15 de novembro, foi instruída a proposta de classificação da pintura pelo Técnico Superior Dr. Roberto Leite, com base no interesse artístico, histórico e patrimonial relevante da mesma, fundamentando-se no parecer do Diretor do MNAA, bem como no fato dos desenhos preparatórios referentes às quatro pinturas vulgarmente conhecidas como “Série Palmela”, no acervo do MNAA desde 1876, estarem classificados como Bem de Interesse Nacional (Decreto Nº. 19/2006, 18 de julho de 2006) e a obra Adoração dos Magos, adquirida pelo MNAA mediante uma fortemente mediatizada campanha de financiamento público, aguardar publicação do decreto da sua classificação como Bem de Interesse Nacional desde 2022.
Relativamente à obra Adoração dos Magos, recorde-se que este procedimento foi aberto por despacho, de 28 de abril de 2021, do Exº. Diretor-geral da DGPC, Arq. João Carlos Santos, nos termos do n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro, sendo que a sua “proteção e valorização representam valor cultural de significado para a Nação” (Anúncio n.º 114/2021, Diário da República n.º 110/2021, Série II de 2021-06-08). A classificação foi aprovada por unanimidade, em reunião ordinária de 19 de maio 2022, da Secção dos Museus, da Conservação e Restauro e do Património Cultural do Conselho Nacional de Cultura, com poderes nesta matéria de acordo com as atribuições que lhe competem nos termos do Decreto-Lei nº 132/2013, de 13 de setembro.
Apesar dos pareceres positivos e da instrução da proposta de classificação da obra Descida da Cruz, a 16 de novembro 2023, o Exº. Diretor-geral Arq. João Carlos Santos indeferiu a proposta, considerando “não oportuna a abertura do procedimento proposto”, de acordo com o despacho sintético da Exª. Drª Fátima Roque, Diretora do Departamento de Museus, Monumentos e Palácios.
Este indeferimento motivou a emissão e envio, em 5 de dezembro de 2023, da Certidão de Comunicação Prévia/Expedição da obra em apreço, nos termos do nº 5 do artº. 58 do Decreto-Lei nº 148/2015, de 4 de agosto.
Este relato, apoiado e documentado pela consulta dos elementos processuais que conduziram à expedição temporária da obra Descida da Cruz, evidencia, na opinião do ICOM Portugal, nalguns casos, irregularidades processuais que importam urgentemente clarificar, bem como, noutros, exigem esclarecimentos face às decisões tomadas que vão contra as orientações fundamentais da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro, (Lei de Bases de Proteção do Património Cultural), no que se relaciona com os bens museológicos de excecional valor cultural.
Desta forma, decorridos cerca de três meses sobre a autorização de expedição, gostaríamos de deixar à consideração de Vossas Exas. o seguinte, a bem do interesse público e na justa medida do respeito pelo interesse privado dos proprietários:
- Quais os argumentos científicos e legais que motivaram e sustentaram a decisão tomada pelo Exº. Diretor-geral Arq. João Carlos Santos, no dia 16 de novembro 2023, no sentido do indeferimento da proposta de classificação, indo contra os pareceres do Exº. Senhor Diretor do MNAA e dos Técnicos Superiores da Divisão de Património Móvel e Imaterial da DGPC?
- Quais os argumentos científicos e legais que motivaram e sustentaram um tratamento distinto para a obra Descida da Cruz em relação à obra Adoração dos Magos uma vez que ambas integram uma mesma e única série pictórica, pensada como tal por Domingos Sequeira?
- Além de esclarecer a localização atual da obra Descida da Cruz, importa avaliar e clarificar se a saída temporária desta obra cumpre a legislação em vigor ou trata-se de uma situação de saída ilegal do território nacional uma vez que a comunicação de expedição temporária, com possibilidade de venda, por um ano (de 2 de novembro 2023 a 2 de novembro 2024), pela empresa Starcorp Portugal, SA. foi apenas feita no dia 2 de novembro 2023 (com entrada na DGPC a 6 de novembro), não cumprindo o estipulado no n.º 1 do art.º 57 do Decreto-Lei n.º 148/2015, de 4 de agosto, que obriga a que a comunicação de expedição de bens culturais não classificados como de interesse nacional ou de interesse público, nem inventariados, seja feita com a antecedência mínima de 30 dias? Sem prescindir do disposto no artigo 13º alíneas b) e d) da Convenção Relativa às Medidas a Adotar para Proibir e Impedir a Importação, a Exportação e a Transferência Ilícitas da Propriedade de Bens Culturais – Convenção de 1970, UNESCO, que tanto Portugal como a Espanha ratificaram em 1985 e 1986, respetivamente.
O princípio da cooperação que tem alimentado o relacionamento entre as nossas instituições, associado a uma permanente postura de transparência e boa governança, levam o ICOM Portugal a solicitar ainda a Vossas Exas. esclarecimentos urgentes sobre as atuais diligências levadas a cabo em relação ao seguinte:
- Estando atual e presumivelmente a referida obra na galeria de arte Colnaghi, pondera-se continuar com a classificação da obra como Bem de Interesse Nacional? Em conformidade com o proposto no parecer do Exº. Senhor Diretor do MNAA, pondera-se abertura de procedimento de classificação das obras Ascensão e Juízo Final, na posse de proprietários privados?
- Quais os esforços efetivamente envidados, nomeadamente pela Comissão de Aquisição de Bens Culturais e a MMP, no sentido que a referida obra de Domingos Sequeira seja adquirida pelo Estado Português e integrado nas coleções nacionais? Quais os esforços efetivamente envidados no sentido de o Estado Português adquirir as obras Ascensão e Juízo Final, na posse de proprietários privados?
Pelas razões acima expostas, o ICOM Portugal não pode deixar de expressar, de forma pública, a sua profunda indignação pela forma como este processo foi conduzido, gravemente lesiva do património cultural português. Domingos Sequeira, nome que ecoa através das páginas da história da arte portuguesa, deixou uma marca indelével como um dos pintores mais notáveis do século XIX, não só a nível nacional como europeu. A série pictórica, composta de 4 pinturas, na qual se integra a Descida da Cruz, é considerada das suas mais importantes obras, revestindo-se de características de “testamento plástico” do autor, no qual celebra o encontro entre a tradição e o contemporâneo.
Além dos imprescindíveis esclarecimentos sobre o sucedido, urgem medidas concretas e imediatas para reverter a saída desta obra do território nacional, bem como assegurar a sua proteção e valorização através da sua classificação.
Com os nossos melhores cumprimentos e com elevada estima pessoal,
Lisboa, 15 de fevereiro 2024
O Presidente do ICOM Portugal
David Felismino
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